...

.

.

domingo, 31 de agosto de 2014

Os Santos Devem Andar a Sós

A. W. Tozer

A maioria das grandes almas deste mundo foram almas solitárias. A solidão parece ser o preço que o santo deve pagar pela sua santidade.

Na manhã do mundo (ou talvez devêssemos dizer, naquela es­tranha escuridão que surgiu logo após a alvorada da criação do homem), aquela alma piedosa, Enoque, andou com Deus e já não era, porque Deus a tomou; e embora não seja dito exatamente nessas palavras, pode-se muito bem inferir que Enoque seguiu por um caminho bem diferente daquele de seus contemporâneos.
Abraão tinha Sara e Ló, assim como muitos servos e pastores, mas quem pode ler a sua história e o comentário apostólico sobre ela sem sentir imediatamente ser ele um homem "cuja alma se assemelhava a uma estrela e habitava na solidão"? Ao que sabemos, Deus jamais se dirigiu a ele quando acompanhado por outras pessoas. Abraão se comunicava diante do seu Deus, e a dignidade inata do homem proibia que assumisse esta postura na presença de outros.
Como foi doce e solene a cena naquela noite do sacrifício quando ele viu o fogo movendo-se entre os pedaços da oferta. Ali, sozinho com o horror da grande escuridão à sua volta, ele ouviu a voz de Deus e soube que tinha sido marcado com o favor divino.
Este   capítulo   foi   originalmente   escrito   para   a   revista   "Eternity,"   sendo usado aqui com a permissão da mesma.
Moisés foi também um homem separado. Embora ainda tivesse ligação com a corte do Faraó, ele fazia grandes caminhadas sozinho. Durante um desses passeios, enquanto estava ainda longe da mul­tidão, ele viu um egípcio e um hebreu brigando e foi em auxílio de seu conterrâneo. Depois do rompimento com o Egito, que resultou desse ato, ele habitou em quase completa reclusão no deserto. Ali, enquanto vigiava sozinho seu rebanho, o prodígio da sarça ardente surgiu diante dele e mais tarde, no alto do Sinai, ficou abaixado, sozinho, para contemplar em fascinado terror a Presença, parcial­mente oculta, parcialmente  revelada,  dentro  da  nuvem  e  do  fogo.
Os profetas das eras pré-cristãs eram muito diferentes uns dos outros, mas uma coisa que tiveram em comum foi a sua solidão forçada. Eles amavam seu povo e se gloriavam na religião dos pais mas sua lealdade ao Deus de Abraão, Isaque e Jacó, e seu zelo pelo bem-estar da nação de Israel os afastou da multidão, lançando-os em longos períodos de isolamento. "Tornei-me estranho a meus ir­mãos, e desconhecido aos filhos de minha mãe" (Sl 69:8), clamou um deles e sem saber falou por todos os demais.
A visão mais reveladora foi a dAquele de quem Moisés e todos os profetas escreveram, seguindo solitário para a cruz. Sua profunda solidão não foi mitigada pela presença das multidões.
£ meia-noite e no alto do monte das Oliveiras As estrelas que brilhavam esmaeceram; É meia-noite agora no jardim, O Salvador que sofre ora sozinho.
É meia-noite e afastado de todos, O Salvador luta só com seus temores; Nem mesmo o discípulo a quem amava, Observa o sofrimento e as lágrimas do Mestre.
William B. Tappan
Ele morreu só na escuridão, oculto aos olhos do homem mortal e ninguém observou quando ressurgiu triunfante, deixando a sepul­tura, embora muitos o vissem mais tarde e testemunhassem quanto ao que viram. Existem coisas sagradas demais para qualquer olho observar além do de Deus. A curiosidade, o clamor, o esforço bem-intencionado  mas   sem  jeito,  podem  prejudicar  cm   vez  de   ajudar a alma que espera e tornar improvável  senão impossível a comu­nicação da mensagem secreta de Deus ao coração do adorador.
Algumas vezes reagimos com uma espécie de reflexo religioso e repetimos obrigatoriamente palavras e frases adequadas, embora elas não expressem nossos sentimentos reais e lhes falte a autenti­cidade da experiência pessoal. Isso está acontecendo agora. Uma certa lealdade convencional pode fazer alguém que ouça esta verdade pouco familiar expressa pela primeira vez dizer com animação: "Oh, nunca me sinto sozinho. Cristo afirmou 'Não te deixarei nem te desampararei', e 'Estarei contigo para sempre'. Como posso sentir-me solitário quando  Jesus está comigo?"
Não quero julgar a sinceridade de qualquer alma cristã, mas este testemunho é demasiado típico para ser real. Trata-se eviden­temente do que o indivíduo pensa que deveria ser verdadeiro em lugar do que provou ser verdade mediante o teste da experiência. Esta alegre negativa da solidão prova apenas que a pessoa jamais andou com Deus sem o apoio e ânimo supridos pela sociedade. A sensação de companheirismo que ele erradamente atribui à presença de Cristo pode ter origem, e provavelmente tem, na presença de amigos. Lembre-se sempre: você não pode levar a cruz acompanhado. Embora o homem possa estar cercado por uma imensa multidão, a sua cruz lhe pertence e o fato de carregá-la faz dele um ente à parte. A sociedade se voltou contra ele, caso contrário não teria uma cruz. Ninguém mostra amizade pelo homem com uma cruz. "Todos deixando-o. fugiram."
A dor da solidão está ligada à constituição de nossa natureza. Deus nos fez uns para os outros. O desejo de companhia é comple­tamente natural e certo. A solidão do crente nasce do seu andar com Deus num mundo ímpio, um caminhar que freqüentemente o afasta da companhia de bons cristãos assim como do mundo não-regenerado. O instinto que lhe foi concedido por Deus clama por manter amizade com outros que se identifiquem com ele, outros que possam compreender seus anseios, suas aspirações, sua absorção no amor de Cristo; e pelo fato de no seu círculo de amigos serem tão poucos os que partilham de suas experiências íntimas, ele é forçado a andar sozinho. O anseio insatisfatório dos profetas pela compreensão humana levou-os a queixar-se em voz alta e chorar, e até o Senhor também sofreu assim.
O homem que entrou na presença divina numa experiência interior real não encontrará muitos que o compreendam. Uma certa fraternidade social lhe será naturalmente oferecida enquanto se mistura com pessoas religiosas nas atividades regulares da igreja, mas verdadeiro companheirismo espiritual vai ser difícil de achar, embora não deva esperar outra coisa. Afinal de contas, ele é um peregrino e a jornada empreendida não é feita com os pés, mas com o coração. Ele anda com Deus no jardim de sua própria alma — e quem senão Deus pode andar ali com ele? O seu espírito difere do das multidões que caminham pelos pátios da casa do Senhor. Ele viu aquilo que elas só tiveram oportunidade de ouvir, e anda em seu meio como Zacarias andou depois de sua volta do altar quando o povo sussur­rou: "Teve uma visão".
O indivíduo verdadeiramente espiritual é de fato extravagante. Não vive para si mesmo mas para promover os interesses de Outro. Ele procura persuadir as pessoas a darem tudo de si ao Senhor e não pede qualquer porção para si mesmo. Compraz-se em ver seu Salvador glorificado aos olhos dos homens, e não em receber honras pessoais. Sua alegria é ver seu Senhor promovido e ele próprio negligenciado. São poucos os que desejam trocar idéias com ele sobre o objeto supremo do seu interesse, e fica então no geral silencioso e preocupado em meio às conversas religiosas barulhentas e triviais. Ganha assim a reputação de ser aborrecido e sério em excesso, sendo evitado e alargando cada vez mais o abismo entre ele e a sociedade. Busca amigos em cujas vestes pode sentir o aroma da mirra e do aloés saídos de palácios de marfim, mas encontrando poucos ou nenhum, como Maria fez antigamente, guarda essas coisas em seu coração.
Justamente essa solidão o faz lançar-se de volta a Deus. "Quando meu pai e minha mãe me abandonarem, então o Senhor me tomará para si." Sua incapacidade de encontrar companhia humana o leva a buscar em Deus o que não descobre em lugar algum. Aprende em solidão interior o que jamais poderia ter aprendido junto à multidão — que Cristo é Tudo em Todos, que Ele foi feito para nós sabedoria, retidão, santificação e redenção, que nEle temos e possuímos o summum bonum da vida.
Duas coisas precisam ainda ser ditas. A primeira é que o homem solitário que mencionamos não e arrogante, nem é o tipo "mais santo do que tu" amargamente satirizado na literatura popular. Com toda probabilidade sente-se o mais insignificante de todos os homens e culpa-se a si mesmo de sua solidão. Quer partilhar seus sentimentos com outros e abrir o coração a alguém cuja alma se identifique com a sua, mas o clima espiritual que o rodeia não o anima e permanece então em silêncio, contando suas mágoas somente a Deus.
A segunda coisa é que o santo solitário não é o homem arredio que endurece o coração contra o sofrimento humano e passa os dias contemplando os céus. O oposto é verdade. Sua solidão o faz acolher com simpatia os que têm o coração partido, os que caíram pelo caminho e os que foram manchados pelo pecado. Por achar-se desligado do mundo, tem muito maior capacidade para ajudá-lo. Meister Eckhart ensinou seus seguidores que se estivessem orando como para serem transportados para o terceiro céu e acontecesse lembrarem de uma pobre viúva que precisava de alimento, deviam interromper imediatamente a oração e ir cuidar da viúva. "O Senhor não permitirá que percam nada com isso", disse-lhes. "Podem retomar a oração no ponto em que a deixaram e o Senhor irá aceitá-la da mesma forma". Isto é típico dos grandes místicos e mestres da vida interior, desde Paulo até hoje.
A fraqueza de tantos cristãos modernos é que eles se sentem à vontade no mundo. Km seu esforço para conseguir um "ajuste" agradável à sociedade não-regenerada, eles perderam seu caráter de peregrinos e se tornaram uma parte da própria ordem moral contra a qual foram enviados para protestar. O mundo os reconhece e os aceita pelo que são. E esta é justamente a coisa mais triste que pode ser dita a seu respeito. Não são solitários, mas também não são santos.